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Reto, direto e concreto /1962/

 

José Lino Grünewald

 

Extraído de: 

poesia concreta  o projeto verbivocovisual.  / organização João Bandira – Lenora de Barros /  São Paulo: Artemeios, 2008.   256 p. ilus. col.   23x30 cm. Patrocinio:
PETROBRAS.           Inclui um CD.  Apoio Ministerio da Cultura.   Ex. bibl. Antonio Miranda

 

 

Quando o recente movimento vanguardista na poesia se denominou como concreto, não queria, com isso, alegar pejorativamente que todos os poemas até então compostos eram abstratos. A causa de certas nomeações,- via de regra, está muito mais vinculada à ênfase imprimida a um dado termo em situação. Sob uma visão generalizante, desde Homero, passando por Dante, Baudelaire ou Eliot, todos são concretos; até mesmo o mais ingénuo dos bardos provincianos.

 

Hoje em dia, a especulação filosófica já chegou a essa conclusão, lapidarmente enunciada por um dos maiores pensadores de nossa época, Ernst Cassirer: a linguagem e a ciência são abreviações da realidade, e a arte, uma intensificação da realidade; enquanto a linguagem e a ciência dependem de idêntico processo de abstração, a arte pode ser descrita como um processo contínuo de concreção. Daí, todo artista cria concreções. São as chamadas formas simbólicas ou, então, os objetos virtuais, assim denominados com o fito de diferenciá-los dos objetos reais, de consumo utilitário, ou das formas da natureza.

campo estético, a origem do termo concreto vem das artes visuais e quem primeiro o empregou, há  mais de trinta anos, foi o pintor Theo Van Doesburg. Posteriormente, o seu uso consolidou-se na intenção de distinguir, dentro da arte abstraía ou não figurativa, a sua vertente do racionalismo geométrico ou formas puras, da vertente oposta, subjetivista ou de sensibilismo. Desse modo, a missão do artista não mais seria a de retratar anedoticamente, com maiores ou menores deformações expressivas, fatos e coisas da natureza ou do universo que nos rodeia e, sim, deduzir por decomposição, e até a abstração pura, as formas constantes desse mesmo universo e plasmá-las espacialmente num ritmo puramente visual. Piet Mondrian, o maior nome de pintor teórico no período inicial do abstracionismo e fundador do movimento neoplasticista, dizia que o maior tema não era a evocação da luz, solar ou luminosa, ou qualquer sentimento profundo do autor, mas sim o conflito da linha horizontal com a vertical: "isso está em toda parte e significa a vida".

 

Se, nas artes plásticas, o primeiro alvo de destruição era o figurativismo, na poesia concreta o objetivo primordial era liquidar com a sintaxe discursiva a fim de daí partir para uma reconstrução por um método diferente de compor - ideográfico ou por justaposição. Verdade é que a sintaxe discursiva já tinha enfrentado grandes ou pequenas escaramuças de alguns "ismos", correspondentes a vanguardas de maior ou menor duração: dadaísmo, futurismo, sonorísmo, letrismo etc. Por outro lado, o surrealismo — corrente que, até então, galvanizara maior número de adeptos e mantém a sua permanência, no auge da evidência da sua própria fundamentação irreal e anti-racional - acabava ou distanciava irreparávelmente o poder alusivo da linguagem. Se um poeta como Garcia Lorca, mediante o seu insólito e vigoroso arsenal metafórico, fala, por exemplo, em "camelos sonâmbulos das nuvens vazias", apesar de toda e qualquer dificuldade de apreensão para o leitor, existe uma inobjetável intenção alusiva, há um referente e um referido. Já, por seu turno, quando André Bréton fala em "meu revólver de cabelos brancos", temos o surrealismo em seu ápice, dentro das consequências de tomar alienante qualquer tentativa de formular um esquema de referências.

 

Foi partindo dessas constatações relativas ao discurso - e que estava forçosamente, levando a quase totalidade dos melhores poetas a uma autêntica "torre de marfim", fechando cada vez mais as possibilidades de comunicação -, que o grupo Noigandres (Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari) elaborou o elenco básico de autores, de cuja obra decorreria, numa visão de conjunto, a instigação para criar um novo tipo de estrutura poemática, de tendência eminentemente construtiva e, assim, em termos opostos ao espírito surrealista e de outras correntes. Esses últimos já tinham dado por encerrada sua tarefa meramente destrutiva.


Os quatro mencionados autores são Mallarmé, Joyce, Ezra Pound e Cummings. Mallarmé, o maior vulto do simbolismo francês, poeta de extremos requintes artesanais para o verso, até hoje, de difícil acesso à compreensão, mesmo dos mais iniciados. Mallarmé, com seu último poema, "Um Lance de Dados", quebrou com a continuidade linear do verso, fragmentou a linguagem discursiva, utilizou o espaço em branco de folha de papel e as variações tipográficas como elementos criativos. E o poema funcionava mediante o manuseio de páginas, cada qual com a sua necessária consumação gráfica. Era a grande arrancada. Depois, James Joyce que levando ao máximo de intensificação o princípio da palavra valise de Lewis Carroll, acionou inventivamente toda uma nova morfologia. Trata-se de novas palavras, formadas por meio de justaposição ou aglutinação de duas ou mais palavras, como, por exemplo, ninfantil = ninfa + infantil. Em seu último romance,
Finnegans Wake, ele impeliu esse processo às mais drásticas consequências, construindo uma obra de estrutura circular, que começa pela parte final de uma frase, cujo início está no fim do livro e que, segundo alguns exegetas, pode ser lida a partir de qualquer página, até outra chegar a ela.

Ezra Pound, talvez o maior crítico pragmático da Era Moderna, revolucionou toda uma geração com suas idéias saneadoras, algumas discutíveis, mas tendo o mérito de sacudir a literatura inglesa do marasmo em que se encontrava. Fez valiosas traduções, dos clássicos até os modernos, e ressuscitou inúmeros poetas estrangeiros em seus próprios países de origem. Como poeta, adotando os critérios ideográficos do chinês, transplantou-os para a sintaxe ocidental e, dessa maneira, elaborou a sua maior obra - Os Cantos - a base de justaposição de fragmentos discursivos e, por sua vez, cada canto em justaposição ao outro, vai se formando o seu cosmos peculiar. Quanto a Cummings, deu, isoladamente, diversas estocadas contra o verso: empregou a variação tipográfica, as palavras valise, e o espaço e os recursos gráficos como elementos de composição.

Muitos outros poetas apresentam vestígios "concretizantes" em sua obra, como Lorca, William Carlos Williams ou Dylan Thomas e, aqui no Brasil, também vários escritores formados no movimento de 1922 oferecem a sua contribuição isolada para a nova perspectiva.

Ao mesmo tempo, condições atuais de infra-estrutura parecem solicitar o tipo de comunicação da arte concreta: a Revolução Industrial, com seu desenvolvimento até a automação, a cibernética; a descoberta da lei da relatividade, a passagem0 de uma perspectiva mecânica para uma eletrodinâmica. São novas condições socioeconómicas de vida e comportamento e que, indiscutivelmente, influem nos meios de comunicação — forma e informação.

O movimento de poesia concreta foi lançado em São Paulo, em dezembro de 1956 e, logo depois, em fevereiro de 1957, transferiu-se para o Rio, no Ministério da Educação. A repercussão foi ampla, e, como de hábito, surgiram as interpretações fantasiosas e o escândalo: manchetes, conferências, polémicas. Alguns intelectuais de direita achavam que era brincadeira de meninos mal-comportados, e os de esquerda tachavam-nos de reacionários. Enquanto isso, o Jornal do Brasil abria seu suplemento literário, no qual os concretos continuavam a desenvolver suas teorias e apresentavam poemas. Posteriormente, Ferreira Gullar e Reynaldo Jardim desligaram-se do movimento por discordar de seu sentido e fundaram o grupo Neoconcreto.

O concretismo poético não se estendeu apenas pelo Brasil. Também no exterior. Já na época de seu lançamento, havia, na Europa, um poeta suíço-boliviano, Eugen Gomringer, que praticava um idêntico tipo de poesia e também acedeu conferir a suas experiências o nome de poesia concreta. Depois, o movimento não só encontrou eco nele, porém estabeleceu focos na Alemanha, Áustria, Suíça, França e até no Japão. Duas importantes exposições já foram levadas a efeito no exterior: uma no Museu de Arte Moderna de Tóquio e oútra em Stuttgart (Alemanha), patrocinada pelo filósofo Max Bense.

Os poetas concretos, a par do movimento, desenvolveram intensa atividade cultural, divulgando e traduzindo diversas obras teóricas e artísticas de autores estrangeiros, bem como, há pouco, descobrindo a inestimável importância de um poeta nosso - Sousândrade - soterrado, sob o epíteto de louco ou extravagante, há bem mais de cinquenta anos. Isso se verificou já no Correio Paulistano, em que, durante cerca de um ano, foi mantida uma página de vanguarda denominada invenção, criada sob o interesse e o estímulo do poeta Cassiano Ricardo, que permitiu a reabertura de uma dialética entre as constantes de 22 e do concretismo. Essa página seria substituída por uma revista, dentro do mesmo espírito.

0 poema concreto visa, naturalmente, a forjar um novo tipo de sensibilidade. Não se trata de desprezar o nível semântico das palavras e apenas se preocupar com a consumação gráfica, como muitos pensaram. O que a palavra diz é preservado, mas condicionado primordialmente à situação estrutural dessa mesma palavra, num jogo de relação no qual também entram, dependendo do poema e da maior ou menor ascendência, os aspectos óticos e sonoros. É um puro problema da forma que se ergue; contudo, aqui não se deve entender forma como fôrma, formato ou formalismo e, sim, como estrutura, ou melhor, um dado processo deduzido entre elementos empregados e suas respectivas relações. Não é um tipo de arte expressiva, na qual o artista cunha imediatamente o seu temperamento, porém uma modalidade funcional, quando ele procura deslindar uma atual cosmovisão por meio de uma comunicação simplesmente estrutural e de alcance geral. Clareza e concisão.

Publicado originalmente no Correio da Manha, 6 de junho de 1962; republicado em: GRÚNEWALD, José Lino. O Grau Zero do Escreviver. São Paulo: Perspectiva, 2002.

Para o futuro, resta unicamente saber se essa participação de fato, a que se propõe, é uma utopia, ou se a especialização crescente do mundo moderno, em lugar de criar compartimentos estanques, permitirá ao homem, devido a sua própria intensificação, que chegue intuitivamente a vislumbrar com mais facilidade o caráter puramente formativo ou processualístico das coisas.

 

Publicado originalmente no Correio da Manhã, 6 de junho de 1962, republicado em: GRUNEWALD, José Lino. O Grau Zero do Escreviver, São Paulo: Perspectiva, 2002.

 

Publicado no Portal de Poesia Ibero-americano em novembro de 2017.


 

 

 
 
 
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